domingo, 25 de março de 2012

"Ácido de Bateria!"


Bolas!
E o dia tinha começado tão bem…mas agora ia piorar…

O Adepto já conhecia o estilo do ser que acabava de entrar e não o divertia particularmente, era uma criatura de pura energia vinda de Annoy, um desses indivíduos que se julgava apto para ensinar absolutamente tudo, sobre todas as coisas, apenas porque era feito de electricidade e podia navegar nas ondas de rádio se lhe apetecesse. Nunca lhes ocorria, por exemplo, que outras criaturas pudessem preferir, sei lá, dar uma volta a pé e apanhar ar fresco, em vez de serem transmitidos por rádio. Aquele, em particular, volta e meia tinha a mania de chegar ao Recanto e sugerir alterações na ementa sem ninguém lhe perguntar nada. Mal viu o Adepto lançou:

“ Então, está tudo bem contigo?”

Ele adorava ser “acessível” àqueles que achava seus inferiores, o que constituía, num valor arredondado para baixo, todos os outros.

“Está tudo dentro do possível…mas não por muito tempo…”

O Annoyano ignorou, como fazia sempre e, pegando na ementa, deitou aquilo que ele gostava de chamar
“um olhar clínico”:

“Então, estou a ver que ainda não decidiste juntar ácido de bateria aos teus capuchinos?”

“Pois…eu já te disse que nem todos apreciam ácido de bateria… terei todo o prazer em te servir isso… mas vêm cá outras espécies, sabes? Não só Annoyanos.”   

“Oh… mas o ácido de bateria dá um gosto tão bom aos capuchinos. É um sinal de elegância muito delicado, sabes?   Faz o que eu te digo, vais ver, o Guia dá logo cinco estrelas aqui ao estabelecimento!”

“Isso se quem vier fazer a crítica não morrer envenenado.”

“Não morre nada. Se eu não morro.”

“Mas tu és feito de electricidade, nem sequer absorves matéria, só gostas de fazer de conta que comes.”

“E…o teu ponto de vista é?”

“Nada… esquece…olha, vou buscar-te o habitual” disse o Adepto enquanto fugia antes que fosse mais massacrado.

“Não te esqueças,” berrava o Annoyano mesmo assim, “ácido de bateria! O segredo está no ácido de bateria!”

À medida que se afastava o Adepto olhou por cima do ombro e reparou que a criatura se tinha voltado para o pianista e lhe estava agora a dar algum conselho… mas com esse iria ter ainda menos sorte, ele era um homem de convicções vincadas.

Como resposta, de facto, ele apenas começou a tocar uma estranha canção terrestre   (sendo um enorme crédito para o seu talento o facto de conseguir que um piano soasse a uma data de outras coisas que nada tinham a ver com esse instrumento... era um dom):


domingo, 11 de março de 2012

Inspecção Vogon



O Adepto de Éris não estava nada à espera que um Vogon entrasse no seu estabelecimento.
Quando viu aquela massa amorfa, nojenta, viscosa, mal cheirosa e desagradável  sentar-se numa das mesas revirou os olhos. Sabia que tinha prometido servir qualquer ser que decidisse passar por ali…mas, francamente, deveria ter aberto uma excepção para aqueles…argh…burocratas. Mesmo assim, encheu-se de coragem e aproximou-se, havia que manter a calma.


“Bem vindo ao Recanto. O que vai desejar?”


O Vogon olhou para a ementa e começou a ler em voz alta os nomes dos pratos, um a um,
  de forma tão lenta e arrastada, que poderia ser facilmente ultrapassada por uma placa tectónica.
Ao fim de uns bons vinte minutos, durante os quais o Adepto foi forçado a ficar ali, a olhar para ele, sem fazer mais nada a não ser aguentar a vontade de vomitar, acabou a leitura e lançou:


“Não vou querer nada. Vim fazer uma inspecção.”


Essas palavras para o proprietário de qualquer estabelecimento galáctico, eram o equivalente a ser sentenciado à morte três vezes seguidas, de forma extremamente lenta e agonizante, com ressurreição pelo meio.
 

“Podemos começar por ver a documentação…”


“Não!”

O Vogon fez uma pausa e ajustou os óculos.



“Resistir é inútil. Sob pena de...um recital lírico em quatro partes.”



Era terrivel! Se aquela besta decidisse começar a recitar poesia…estava tudo acabado.



“Er… muito bem… eu vou buscar…”




“Em triplicado.”



“Mas eu só tenho um de cada…”



“Tem que os copiar á mão, então.”



“Á mão?”



“Sim, á mão. Mas antes de os entregar tem que os passar a computador. São as regras. Artigo 26, Capitulo 5, alínea d), linha 4 do Código Galactico de Restauração. ”



“Mas…”



“Não me dê problemas….só estou a fazer o meu trabalho…”


E, dito isto, grunhiu com prazer



Claro que estava apenas a "fazer o seu trabalho", mas como era um Vogon, tinha o maior dos gostos nisso.


O adepto foi tratar daquilo que o Inspector pedira.
Enquanto tratava da imensa papelada, não sabendo se sobreviveria, o único conforto que tinha era repetir, para si mesmo,  o conselho dado na capa do maior e mais completo repositório de conhecimento alguma vez escrito:

“Don’t Panic”.

O Adepto não conhecia o autor daquelas palavras, mas quem quer que fosse, certamente, não seria ninguém menos que genial.



De facto todo o Guia  o era.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Um Dia Especial

O Recanto assemelhava-se a uma selva, por toda a sala viam-se decorações com folhas exóticas bem como ramos e arranjos que faziam ostensivo uso de flores e frutos coloridos. Era um dia especial e havia que o celebrar condignamente.
À entrada do estabelecimento, o Adepto, acabava de pendurar uma grande faixa com as palavras “Feliz Dia Galáctico Das Formas De Vida Vegetais!” e, mais abaixo, “Desconto Especial Em Todas Os Pratos Fotossintéticos!!!!”
Estava, precisamente, a admirar o seu trabalho do alto do escadote, quando um verme tubular de Freeporalk-7, cliente habitual, entrou:


“Eish, ó Adepto, isto hoje está um mimo. Que é que vai para aqui?”

“É a nossa forma de homenagear as formas de vida vegetais que tanto têm sofrido em toda a galáxia.”

“Isso é muito simpático.”

“Tremendamente.”

“E amanhã, também as vão homenagear? Ou fica por aqui?”

“Não abuses, já lhes damos um dia inteiro, não achas que chega? As plantas hoje até recebem descontos em coisas e assim.”

“Fantastico. Quem me dera a mim ser hoje uma.”

“… mas só hoje, não  é?”

“Claro, não era eu que estava para ser tratado como uma criatura diferente todos os dias.”

“Sim…e receber salários baixos, ser avaliado como objecto de decoração, descriminado pelos vegetarianos, etc…”

“Mas pronto… compensa-se com os descontos, prendinhas e elogios simpáticos hoje…”

“É… acho que sim…”

O verme rastejou até uma mesa e, entretanto, o pianista do Recanto, um ser discreto mas sempre oportuno, começou a ensaiar uma das canções que iria apresentar nessa noite. Alguns seres, mais desconfiados, poderiam imaginar que talvez houvesse um ligeiro toque de ironia na escolha daquele tema…mas isso, obviamente, era desconfiança doentia…




terça-feira, 6 de março de 2012

Música e Guerra


Enquanto olhava pela janela e tomava o seu café o homem de Ghestlit não conseguia deixar de cantarolar o hino planetário de Delti. Repetia-o baixinho e insistentemente.
O Adepto abanou a cabeça… pobre desgraçado… certamente era um dos muitos refugiados da guerra naquele sistema, mas não sem antes pagar um preço extremamente alto.
Ghestlit  e Delti combatiam há já não se sabia quantas gerações e não se coibiam de utilizar as piores formas de violência entre si. Mas vermes auditivos, até para eles, eram armas baixas. Infelizmente, apesar de terem sido banidos pelo “Acordo Inter-Planetário De Coisas Excessivamente Marotas Para Se Fazerem Até Em Situação Guerra” (o “A.I.P.C.E.M.P.F.S.G.”, na sua forma curta), era triste comprovar que não tinham sido eliminados. Aquele soldado era obviamente vitima de um desses parasitas.
“Amigo,” disse o adepto aproximando-se da criatura, que apenas o fitou com um olhar vazio, sem nunca deixar de murmurar versos “o café é por conta da casa e, se quiser, dou-lhe o endereço de dois centros que estão a trabalhar para resolver o seu…problema… não é muito, mas é o máximo que posso fazer.”

Ante o sorriso agradecido que o gheslitiano lhe deitou o Adepto de Éris anotou num guardanapo:


http://www.bbc.co.uk/news/magazine-17105759


http://earwormery.com/

“Espero que o ajudem…”
Depois de se despedir foi à cozinha buscar uma travessa de muffins acabados de fazer. 
Pelo caminho, sem reparar, começou a cantarolar:


“Avante, ó Delti rochoso,

 Não deixeis morrer o nosso santo Peru
 Que o vosso bastião flutue vitorioso
 E os inimigos levem um chuto no…”

Até que se apercebeu…

…também tinha sido contaminado.

Malditos vermes!

domingo, 4 de março de 2012

Uma Luta de Vontades


O Adepto analisava cada movimento do seu oponente, alimentando ódio suficiente para dar origem a um pequeno holocausto. O tempo passava e ele continuava preso nas palavras daquele individuo. Conseguia ver que o alienígena também sentia uma boa dose de desprezo por ele, era habitual. E, no entanto, era admirável como se mantinham os dois a sorrir um para o outro, como se fossem os maiores amigos do universo. E ele nem sabia porquê.  O vendedor estava em pleno controlo da situação, conseguia isso graças a um treino intensivo  nos cruéis campos de técnicas de vendas em Trephar-Al-Trash. Nem era bom imaginar o que teria sofrido. Ainda assim o Adepto conseguiu soltar:

“Pela milionésima nona vez, não precisamos de nada disso. Isto é um café, não é um planetóide!”


“Não precisam? “ disse ele, pousando um pesado portefólio em cima da mesa “Mas acredite que vai passar precisar! Veja-me só esta elegância, este design. Os que lhe vou mostrar agora são modelos vintage, mas posso fazer alguns no mesmo estilo à vontade. Estes foram para um grande nevão, já há uns bons anos, mas eram de extrema qualidade.”


Ele abriu a pasta e começou a apontar variadas fotos no seu interior:


http://ngm.nationalgeographic.com/2011/02/snowflakes/vintage-photography


“E não há dois iguais,” acrescentou com orgulho “disso pode ter a certeza! Não somos como outras empresas - cof a CrioZen cof - que, como acham que ninguém vai lá confirmar, fazem meia dúzia de modelos e depois fabricam-nos em massa. Não senhor, pode confiar, os nossos são únicos e todos feitos à mão por velhinhas cegas em Dervon-Rembil.”


“São muito lindos, sim senhor, mas já lhe disse que não é preciso, homem! Você é mais teimoso que um camelo de bossa invertida!”


“Então e estes? Veja só estes. Se não gostar dou-me por vencido.
 São mais recentes, mas não deixam de ter aquele charme antigo que noto, pela decoração do seu estabelecimento, lhe cai no goto.”

“Cai no goto?
  Há realmente quem diga isso na vida real?”

“Eu digo.”


"Os meus sentimentos."

 
O vendedor ignorou e abriu novo portefólio:

http://ngm.nationalgeographic.com/2011/02/snowflakes/1923-snowflakes-photography


“Sim, muito bons” disse o Adepto “mas não estou mesmo a ver para que os possa usar.”


“Também servem para fazer gelado.”


“Ai é?”


“Sim.”


“Então, olhe…"
 


Tinha sido derrotado e sabia-o bem. Sentia-se lixo enquanto dizia isto, mas era a unica escolha que tinha.

"...encomende-me aí meia dúzia, mas dos mais baratos…”

O vendedor esfregou as mãos, satisfeito, enquanto tomava nota da encomenda.


“Agora, se não se importa” começou o Adepto, mas foi subitamente interrompido.


“Olhe já que estamos nisto… não gostaria de dar uma vista de olhos aos nossos padrões de geada? Ficam bem em qualquer janela…”


Sacou de um novo calhamaço. O Adepto revirou os olhos, enjoado… aquilo ainda iria demorar, por Éris, afinal ainda não estava salvo.


http://ngm.nationalgeographic.com/2011/02/snowflakes/1923-dew-photography

sexta-feira, 2 de março de 2012

Um Sonho Para Aluguer


A sala principal do “Recanto” estava cheia. Formas de vida variadas sentavam-se frente a mesas, conversando, rindo e convivendo. Numa podiam-se ver dois globos tentaculares de Norbula Reinolds a namoriscar. Noutra, uma carraça gigante de Fere agarrada a um copo, com ar pensativo. Na extremidade da sala, perto do pianista que interpretava uma romântica valsa sobre o envenenamento de pombos no parque, sentava-se um casal de seres cinzentos e magricelas, com grandes cabeças e olhos que pareciam os faróis de um autocarro. Estavam obviamente felizes. O Adepto aproximou-se deles.     

“Então, jovens, como vão os primeiros dias de casamento?”
disse ele “Ainda na lua-de-mel, hum? Olhem, ouvi dizer que estavam à procura de um sítio para guardar as tralhas que não podem levar no novo disco? Então isto talvez vos interesse.”

Pousou em cima da mesa um recorte de jornal: 

http://www.dn.pt/inicio/ciencia/interior.aspx?content_id=2336546

“Pois… pelos vistos naquele planeta aguado, jeitosinho, ali a meio caminho entre Júpiter e o Sol - vocês sabem, aquele pequenino a que chamam Terra e que está cheio de criaturas bípedes que julgam que mandam naquilo, coitadas - andam mais ralados com uma tal religião manhosa chamada “Economia & Finanças” do que com o futuro da espécie.


Não me perguntem, eu também não percebo o culto. Daquilo que ouvi dizer os sacerdotes dão a impressão que só correm de um lado para o outro, com as mãos no ar, a murmurar cálculos muito suspeitos, intercaladas por súbitos berros de “Crise! Crise!”, sem fazerem mais nada de útil… mas devo ser eu que não entendo, claro, de certeza que é tudo extremamente profundo e filosófico.


Só é pena que todos os outros que se preocupam com arte, ciência e o verdadeiro avançar da espécie deles estejam a ser completamente ignorados.


E ainda dizem que são formas de vida inteligentes…taditos…


Se me perguntarem, bem fazem vocês em lhes comer a cabeça toda com raptos aleatórios e desenhos malucos em campos de trigo no meio do nada, eles merecem.


Não é nada comigo, claro, mas ainda estou para ver o que é que vão fazer quando um dia lhes aparecer um calhau enorme no céu, como o que me caiu na cozinha ainda semana passada e deixou tudo numa confusão fumegante. (Ok, pelo lado positivo extinguiu um monte de lagartos gigantes que faziam lá ninho e se metiam em todos os cantos, é verdade, mas isso não me paga a despesa da remodelação, caramba.) Ou quando a casa já não lhes for tão confortável. Devem julgar que aquilo vai ser sempre bom para eles, os tolinhos. Até parece que não conhecem a história do planeta em que vivem. Extinções em massa é o que aquele menino faz melhor. Quando chegar a altura de sair, vai ser bonito, vai. Se calhar vão rezar à tal Economia, para ver se ela faz algo. Ou só então é que vão pensar que, muito provavelmente, deveriam ter continuado a olhar cá para cima, como sempre tinham feito, antes de começarem a olhar só para os pés e para os bolsos.


Bem, mas isto também não é importante…. sou eu a meter-me na vida alheia… só achei que podiam querer alugar o sitio…


E então, meninos, vai uma empadinha de Arthurus-5? Estão acabadas de sair do forno.”

quinta-feira, 1 de março de 2012

Grande Abertura!


Sejam bem vindos!

Perdido no meio do universo, grande, negro e repleto de pontos vazios, a girar eternamente num dos braços de uma insignificante galáxia, chamada “Via Láctea” por alguns dos habitantes locais mais caricatos, acabou de abrir um novo estabelecimento, “O Recanto Aconchegado da Galáxia”. Façam o favor de entrar…


Aqui servimos chá, biscoitos, chocolate quente, café, ou seja lá o que for que vos faça sentir mais confortáveis. Especializamo-nos a atender formas de vida baseadas em carbono, mas seres de pura energia, formas de vida silicáreas ou viajantes interdimensionais cansados, também serão bem vindos, desde que limpem os pés à entrada e não arrastem poeira espacial para o parquet. Somos simpáticos mas queremos asseio.

Com respeito pelas mais variadas culturas permitiremos quase tudo aqui dentro, tendo por limite apenas o bom senso. Francamente, pelo Adepto de Éris (Doutorado em Coisas, Engenheiro de Palitos, Delegado Vendedor de Castanhas, Papa e Gerente-Extraordinário deste estabelecimento), desde que os cogumelos sapientes de Fungy-7 mantenham os esporos dentro das calças e todos os outros clientes sigam o seu exemplo, até podem andar à porrada, com a ressalva, por favor, de não atirarem mesas para cima de quem não estiver à porrada convosco (só é de bom tom) nem danificarem os soalhos. De resto, estejam à vontade.

O Adepto (se não lhe vão chamar Senhor Doutor-Engenheiro-Sua-Santidade-Delegado etc., também não precisam de se incomodar com o resto) tomará ainda ao seu encargo a responsabilidade de servir, para além de comidas e bebidas exóticas tragicamente inexistentes, imagens, textos e coisas afins que considere poder interessar à clientela como tema de conversa.

Assim, por favor, puxem de uma cadeira (ou de uma vagem, ou lá no que descansam) e façam de conta que estão em casa (desde que não sejam badalhocos em casa, claro, se não agradecemos que façam de conta que estão noutro lugar qualquer).

Esperemos que se tornem habitués e que apreciem a estadia.

Com os melhores cumprimentos:

O Adepto de Éris (Dr, Eng, Del V.C., P., Ger. Ex.)